Tuesday, December 13, 2005

Individual

Há sempre a tentação de explicar. Dizer com outras palavras a mesma coisa até que não restem dúvidas. Repetir até ao cansaço o sim e o não de cada pensamento e sublinhar com gestos inequívocos a pressão da ideia sobre o nada. Há sempre um desejo de comunicar. Passar para o outro a intenção sublime que, por momentos, parece ser a geradora do movimento emocional. Por vezes parece que o texto vai explodir na referência certa que leva o rosto a voltar-se e dar-lhe o segundo de prosaica atenção. Mas não é bem assim. Nunca é assim. E é animador que não sendo assim, isso seja assim como deve ser. Porque o deve ser não é um deve ser como deve ser. Gosto do indivíduo. Indivíduo é aquele que não é cópia de outro indivíduo, clone de si, de uma realidade que a indústria quer comercial. Indivíduo é a composição diferente de uma massa original, múltiplo de si próprio, diferente sem ser diferente, orgulhoso sem orgulho, faccioso sem facção, falso sem mentira, sábio sem sabedoria. Não se trata, portanto, de explicar. Trata-se de verter no oceano da memória mais umas gotas redundantes de emocionada razão. Trata-se de levar para o outro lado uma carga que quer o lugar de semente da diversidade. Dentro do tempo, dentro do rosto, dentro do momento. Nunca sabemos em que lugar vai colocar-se a nossa próxima palavra. Como também não sei de onde virá a palavra nova que me fará virar a atenção, o prazer e a ternura.

Prólogo

Tuesday, November 8, 2005

Metapoema óbvio

Carstanova3.jpg Carstanova

Ontem à tarde era para ser verdade o teu rosto.
Estava escrito assim no desejo e eu acreditei.
Houve ainda um gesto intenso, um impulso, o susto de um momento.
Ligeiro tom da inocência que desarticula o tempo.

Não é justo que haja o óbvio num poema.
E ainda menos a evidência.
Há-de haver emoção, ambiguidade, ironia e desdém.
Mas não há-de ser óbvio nem evidente.

Sabias então mais do que dizias.
Ou sabias mas não sabias que sabias.
Caía do teu hábito a ilusão sintomática do não ser.
E o olhar estava ausente como o fogo.

Num poema uma lua nunca é a lua.
O tigre é sempre outra coisa que não um tigre.
O que se mostra é o que se quer ocultar.
O que se ouve é apenas o desvio da voz.

Atrás do gesto e da franqueza.
Da regular imensidão das possibilidades.
Deixaste uma sombra uma dor e um voo.
Uma mentira deformada pela vontade.

O poema nasce no interior das meninges.
Espremidas pela angústia, pelo medo, pela emoção.
Nasce contra tudo e contra todos.
À espera de conseguir dizer o indizível.

Não cheguei a saber o que querias.
Tal como não percebi o meu desejo.
O estalo inglório dos meus sentidos.
Perdeu-se em vagarosos movimentos de recuo.

Cada verso que se expõe à voz do mundo
Perde o dono, a identidade, o ser e a intenção.
Passa a ser uma coisa nova em cada boca.
E se assim não for não é bem, nem é verdade.

Não sei que vi em ti que me domou.
E por isso me fiz macabro tigre da indiferença.
Subi a mais alta plataforma das certezas.
À procura de uma trágica lua, solta e inundada.

Envolto em panos que revelam escondendo,
Oculto recheado de evidências,
Mentira quase certa na intenção,
Prazo acabado do saber e do sonho,
Momento interminável de prazer doloroso,
Sombra luminosa de destino ocasional,
Tudo é óbvio menos tu.

Prólogo

Friday, October 28, 2005

Tristamante

Porque estás triste? Não te dei já o sumo de laranja que querias? A anja é a fêmea do anjo sem mas. Mas como o anjo não tem sexo, que é quase o mesmo que dizer que não tem género, a anja também não. Não tem a anja sexo nem lugar no dicionário porque o dicionário tem pouco lugar para as fêmeas das coisas, das palavras e dos factos. Factos como por exemplo o exemplo que é sempre macho e serve para seguir, ou como afecto que afecta mas nunca deixa de ser ele. Ele segue em frente com o modelo de dar à rebeldia do cabelo a forma do desalinho feito de linhas que se sobrepõem e revoltam ou não. Não tendo a anja sexo, nem género, nem abrigo literário, fica ao relento, que volta sempre mais lento, e na falta de um género torna-se genérica com as marcas tatuadas nas asas migratórias. Migratórias são as aves que vão e voltam num ritmo rotineiro como é próprio dos ritmos e das rotinas, dos consolos e dos desconhecidos momentos em que já se não é. É assim a repetição da morte que o ser amargo quis intermitente e que talvez seja mais tarde ou mais cedo o lugar onde se regressa. Porque estás triste? Não te dei já uso modelar, anja? Queres que ria? Regressa ao regaço do conforto dormente, do sorriso desfeito, no peito, no efeito, na letra redonda entrecortada com o vírus raquítico da indiferença. Indiferença matemática. Matemática feminina que se conta em contas de terço ou num terço das contas que em cada conto se fazem para reparar os gestos em falso e os falsos gestos. Gestos gesticulados pela embriaguês dos sucos secretos, das seivas que escalam as montanhas do desejo e regressam incólumes à plana docilidade. Docilidade, anja! Anja, joga hoje, e haja o que houver, age. Age saindo de debaixo da asa, ou dando à asa a largura quase toda do momento e da inércia. Inércia dos sonhos e da razão de olhar apenas e não dar a volta ao sentido da falta de sentido e ao desarranjo laminar das causas. Porque estás triste? Está estragado? Ele arranja consumo e dor.

Prólogo

Thursday, October 20, 2005

Desgostos

Quando não sabemos porque gostamos de uma determinada coisa, seja sopa, som ou garatujas, dizemos que os gostos não se discutem. Porém, estranhamente, é saboroso discutir os gostos. Suponho que poucas coisas mais fazemos na vida do que discutir os gostos. Nunca gostei da Ágata porque na altura em que poderia ter gostado da Ágata, ainda não era a Ágata que se ouvia mas as outras imensas Ágatas que havia. Por razões bastante razoáveis, e à medida que aprendia a ler coisas mais complexas que Os Cinco, e a comer coisas mais sedutoras que pirolitos, também aprendi a exigir sons mais musicais do que ruídos. Poderia, evidentemente, ter permanecido na minha colecção de Ágatas, porque todos os dias aparece uma Ágata nova, com renovada diferença e igual musicalidade. Até poderia explicar porque é que não fiquei com as Ágatas e passei a outras músicas. Mas o assunto não é esse. O assunto é a satisfação e o êxtase. É complicado, muito complicado mesmo, comparar êxtases. Não digo comparar o meu êxtase de hoje com o êxtase de ontem. Refiro-me a comparar o meu êxtase com o êxtase de outra pessoa. Sempre que tento fazer isso faltam-me dados. Nestes casos prefiro dizer que êxtases não se discutem e passar à frente. Já a satisfação é diferente. A satisfação discute-se. Muito satisfeito, pouco satisfeito, nada satisfeito. Tudo isto se aplica à música, ao chouriço ou à literatura. Há quem se satisfaça com pouco. Há quem viva em permanente insatisfação. Há quem se satisfaça principalmente com a insatisfação dos outros. Há até quem, ao longo da vida, por razões pouco razoáveis, vá sendo cada vez mais exigente naquilo que o satisfaz. Por mim, que me satisfaço com pouco, gostaria de me satisfazer com cada vez menos - era mais fácil - mas fico cada vez mais insatisfeito com cada vez mais coisas. É verdade! Ando a tornar-me exigente. E isto é um problema. Porque os êxtases tornam-se um problema. Os êxtases são cada vez menos. É este o preço a pagar pela insatisfação. E porquê esta insatisfação? Porque há poucos que são demasiado poucos para aceitarmos que haja quem se satisfaça com eles. Porque não fico satisfeito ao ver tanta gente satisfeita com tão pouco. Porque lamento que as pessoas não sejam mais exigentes do que são, consigo e com os outros. Porque basta a facilidade para satisfazer. Porque sabendo pouco ou nada há mais hipóteses de satisfação. Tudo isto é um devaneio barroco. Nada disto tem importância. O que era muito importante e construtivo era que se percebesse que não gostar do que uma pessoa gosta não implica não gostar dela. Só assim que se conseguem êxtases a discutir gostos.

(amm)

Tuesday, October 18, 2005

Circunstâncias especiais

Há que ter em conta as circunstâncias. Porque são importantes. Em cada circunstância há, digamos, circunstâncias que a fazem única. Mesmo que sejamos os mesmos e as circunstâncias sejam as mesmas, há sempre uma circunstância que faz a diferença. Pode dizer-se, digo eu, que em cada circunstância temos oportunidade de encontrar circunstâncias que a tornam diferente. Mesmo que haja circunstâncias que se repetem.
Em qualquer circunstância preocupo-me em ser coerente. Posso dizer que espero que qualquer circunstância seja igual a outra circunstância qualquer, para mostrar que sou sempre o mesmo, mesmo que as circunstâncias sejam diferentes. Mas sei que as circunstâncias não são as mesmas. E é essa circunstância que me preocupa. Porque se eu sou o mesmo em qualquer circunstância então eu não sou o mesmo em cada circunstância. Se eu fosse o mesmo numa circunstância qualquer haveria de, dependendo da circunstância não ser o mesmo.
Vamos supor, por absurdo, que em circunstâncias idênticas o meu comportamento tinha diferenças assinaláveis. Isso quereria dizer que nesse tipo de circunstâncias eu estaria a ser eu umas vezes e a ser outro outras vezes. Porque se as circunstâncias são as mesmas, então há alguma coisa que muda que não as circunstâncias, o que não faz sentido, como queríamos demonstrar.
Podemos então dizer que desde que se repitam as circunstâncias, o comportamento é único. Mas, se se der o caso de haver circunstâncias que mudem, então estaríamos à espera que os comportamentos fossem diferentes em cada circunstância.
E, de facto, é isso que acontece quando as pessoas não são coerentes. Mas, se se dá o caso de se ser coerente, então mesmo em circunstâncias diferenciadas o comportamento há-de ser o mesmo da circunstância anterior. Por outro lado, um comportamento que seja visto como coerente em todas as circunstâncias, mesmo nas circunstâncias mais extremas - o que não é forçoso - será sinal de uma grande insensibilidade às circunstâncias o que, circunstancialmente, me parece, digamos assim, pouco humano.
Não queria chegar a esta conclusão. Porque em nenhuma circunstância me ocorreria pensar que a coerência não é uma coisa boa em qualquer circunstância e ousar opô-la à sensibilidade. Pode dar-se o caso de em determinadas circunstâncias a sensibilidade não ser uma coisa boa mas por agora prefiro abandonar temporariamente, e nesta circunstância, a coerência.

prólogo

Monday, October 10, 2005

O coito do Escritor Famoso

Quando andava à procura da forma perfeita, encontrei a esfera. Sei que não é universal, que haverá quem goste mais do cubo ou do fantástico tetraedro, mas eu prefiro uma coisa sem vértices nem arestas, elementar o suficiente para parecer mais do que é e onde a proximidade do toque é sempre pontual.
Talvez por isso, na infância, passasse o meu tempo a esquadrinhar obsessivamente o arcaico globo terrestre que ainda está cá em casa. Incomodava-me saber da enorme sorte que me calhara de, dado que estava sempre numa óbvia vertical, o resto da humanidade viver numa estranha e incómoda obliquidade, para não falar nos antípodas que permaneciam eternamente de pernas para o ar.
Claro que desconfiava que a história estava mal contada. Habituara-me a que, tal como com o sexo, os adultos nos escondiam sempre algumas partes, suponho que com a pedagógica intenção de nos manter interessados em continuar vivos.
Entre as histórias mal contadas e a verticalidade da condição humana, a casa da infância ficou marcada no globo como o lugar em que tem que se olhar para cima para ver o céu.
É por isso que aqui volto quando necessito de alinhar de novo a bússola dos sentimentos. Nada explicável, eu sei. Apenas sensações, vibrações mentais que decorrem de comparar as memórias com os lugares, numa espécie de passatempo do tipo descubra as diferenças.
Os lugares são sempre outros. Aqui soube, entre outros, de Jesus Cristo e de D. Quixote. Não sei qual deles chegou primeiro. Não sei quem é o real que se tornou ficção nem quem é a personagem que se tornou concreta. Que mais faz? Que é a história senão essa capacidade de tirar à ficção os direitos de autor? Ou talvez o contrário...
O que me lembro tem pouco a ver com o que vejo. Os saltos que dava eram muito maiores que a altura da janela. Mas a janela era muito maior. A casa encolheu, os sons agora são menos silenciosos e os cães já não ladram.
Gosto de ter este lugar vertical de regresso. O ponto de partida que torna de novo a meta. O coito onde se volta no jogo das escondidas.

(amm)

Thursday, September 22, 2005

Certezas improváveis

De quantas maneiras posso eu não saber a mesma coisa?
Fiz as contas e fiz de conta que continuei a não saber.
Que saber poderia eu ter para saber que o meu saber é suficiente?
Não sei.
Por isso não sei ainda o suficiente para saber que o que sei é suficiente.
Mas já sei, e estou convicto, que o que sei é mais do que precisava saber para saber o que sei.
Há ocasiões em que sei que já sei tudo.
Não são muito frequentes – diria mesmo que são cada vez mais raras – mas quando acontecem trazem para o elemento instantâneo da memória formas quase certas da existência.
E fico, nesse momento, com certezas quase permanentes sobre o destino e sobre a realidade.
Formas ocultas sem dúvida, sem dúvidas, sem hesitações, sem tristezas, sem tédios e sem medos.
Que banalidades haverá para lá do saber tudo?
Mas o meu jogo há-de ser sempre com o saber.
Não com a mera acumulação de dados – que sei eu? – nem com a estranha ilusão de transformar tudo em números.
O meu jogo há-de ser sempre com essa vacuidade do próprio saber, com aquelas coisas que serão – quem sabe? – universais no tempo e no espaço, saber e conhecimento que não perdem validade nem têm prazo.
O meu jogo é saber do próprio saber uma formulação eterna e insaciável de partículas capazes de conviverem todas no mesmo lugar sem que o espaço-tempo as perturbe.
Mas eu não sei se existe esse saber.
Porque até hoje, na minha busca desastrada de saber mais, mais não tenho encontrado que saber que não sabe, conhecimento que não conhece, tempo que passa, espaço que se ocupa, energia que se gasta e medo que se renova.

prólogo

Tuesday, September 6, 2005

O Mal de Montano

Há pouco, num impulso, beijei um livro. Nunca tinha beijado um livro. Nem a Bíblia Sagrada no tempo em que eu tentava contrariar a minha incapacidade para o espiritual.

Há pouco, num impulso, beijei um livro. Beijei "O mal de Montano".
Talvez não fosse "O mal de Montano" que eu queria beijar. Talvez não fosse um livro que eu queria beijar.

Mas foi um livro que eu beijei. Num impulso. Nunca tinha beijado nenhum livro.
Não sei porque é que beijei o livro. Nem interessa. Interessa sim que beijei um livro, num impulso.

De facto, o que interessa é o impulso.
Suponho que só estou a tomar nota deste beijo que dei num livro porque houve um impulso que me levou a beijar "O mal de Montano".
Foi o impulso, a sensação especial que se seguiu a ter cedido ao impulso, que não qualificarei, de beijar um livro.

Porque este registo, esta sequência de caracteres, tem todo o sentido agora que a escrevo apenas porque beijei um livro. Num impulso.

Depois estive a olhar-me ao espelho. A ver quem era este personagem que se tinha deixado, num impulso, beijar um livro, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo.

E o personagem, do espelho, gesticulou um sorriso, um sorriso com sinais de ter beijado um livro e nos lábios vi-lhe a marca de ter sido beijado por um livro.


amm(4CE)

Wednesday, August 17, 2005

Prólogo a Helena

Na prosa que eu tinha intenção de escrever acerca de Helena iria constar um instante, demasiado curto mas intenso, em que me perguntou se sabia de uma maneira simples de chegar ao céu. Ter-lhe-ei dito que não sabia, mas deveria haver um processo metódico e racional em que, com tempo suficiente e recursos adequados, se poderia fazê-lo.
Antes de tudo falamos daquilo que não sabemos. Explicamos com todas as letras o desconhecido, damos o nome às coisas que não existem e fazemos disso uma boa ocasião para parecer que nos parecemos com alguma coisa. Não fosse isso a vida e pareceria dramático.
Nessa altura, porque foi há muito tempo, as palavras ainda não eram as de hoje mas já contavam histórias impossíveis e verosímeis juntamente com outras em que os números substituíam, com vantagem, a argumentação e a fantasia.
Há sempre alguma injustiça nas palavras, as que são como pedras arremessadas com ódio e as que são pedras deixadas cair como se fossem palavras sujeitas à gravidade das massas imensas, pedras no rim torcendo o corpo incompetente para se regular e irregular na função de se ler a si próprio e voltar de novo às palavras que inventou.
O que me atraiu a mim e a Helena ao baloiço livre do intervalo das deduções e que eu tinha intenção de escrever para assim escrever a fama que vem de longe, do ponto mais alto a que o impulso combinado dos pés e do sonho leva o corpo; o que nos atraiu na força natural que atrai os corpos para as suas proximidades menos evidentes foi, provavelmente, o magnetismo do ferro igual que nos circula nas veias.
No texto que eu tinha intenção de escrever acerca de Helena e de mim e das coisas menos comuns que aproximam os afectos iria falar da nossa surpresa quando os nossos pais foram chamados à escola por causa das nossas destemidas ausências no parque. As nossas mães eram duas mas o pai era só um...

Prólogo

Tuesday, August 2, 2005

Apara raios

Olha se eu agora aparecesse aqui e fosse outro se não se soubesse que era eu e portanto se não pudesse identificar a origem desta fala a não ser por suspeita ou por desejo de suspeita ou ainda melhor por ser afinal outro mas não o outro que sou e sim um outro que não sou afinal eu.
Dos factos não sobraria nenhum gesto a não ser a memória difusa do que terá sido mas não tendo sido não se revelou e não se tendo revelado só resta a certa incerteza de não ter sido mais nada do que um movimento perdido.
Olha se eu agora não fosse eu nem fosse nada e não quisesse perder o meu tempo a perder e tivesse por isso que saltar de linha em linha com a ligeireza de um crocodilo no seu rio predilecto à procura do rasto sanguíneo das lágrimas que se evaporaram nitidamente na curva mineral do dorso da corrente.
Vida e água serão a mesma coisa quando se vertem avidamente sobre a terra seca do estio prolongado das ideias e dos sentidos e das ilusões.
Olha se eu agora batesse à porta e não fosse eu mas outro rosto eventualmente desconhecido como é sempre o rosto que surge no lugar do rosto que se espera e dá lugar a outro e que por isso e por outras coisas acaba por ser melhor ou pior recebido conforme as sensações que se tenham acumulado no momento e tenha sido adicionada a negação de todos os sentidos e de todas as formas.
Há em cada esquina uma surpresa que poderemos receber ou não mas que estando lá nos espera e nos soletra por gestos horrivelmente subtis modelos novos de encarar o descer da luz sobre os actos mais banais e diz com a repetição própria de tudo o que é vivo que a surpresa que há em cada esquina não é nada comparada com a surpresa que às vezes vem de dentro e leva o pensamento para as esquinas da memória que não tem objecto nem vontade de ser nuvem nem sonho nem pedra nem fome nem desejo.
Olha se eu agora dissimulado em paisagens etílicas parecesse outro que não sou ou pelas mesmas razões parecesse o outro que sou e se dissolve em solventes universais da memória e que dos gestos habituais me movesse para saltos mortais de defunto que no fundo sou de todas as ilusões ou pelo menos daquelas que davam sustentação ao gesto arbitrário de me querer morto antes da hora e não agora e nada nada nada.
O meu sonho era ser um pára-raios colocado no mais alto dos edifícios da terra à espera da carícia eléctrica da próxima nuvem cinzenta e aterradora que se desfizesse em lágrimas perante o ar seguro da minha alegria e esta força interior desconhecida e oculta que me liga directamente à terra de onde nasce todo o sentido do amor do humor e do fogo.

amm(582)

Monday, July 18, 2005

Sentido desfigurado

Gosto de dizer palavras sem sentido porque as palavras com sentido não têm sentido nenhum.
Gosto de a essas palavras sem sentido juntar um sentido qualquer que mesmo sem ter sentido me faça sentir que nenhum sentido é melhor que não ter sentido.
É no sentido dessas palavras sem sentido que sinto a falta de sentido que todo este sentido tem.
E afinal o que são palavras sem sentido?
Não faz sentido perguntar o que são palavras sem sentido.
E é aí que está o sentido que a falta de sentido das palavras, tem.
Porque uma palavra sem sentido pode ter um sentido que não é o sentido que sentimos que tem.
Sim, porque...
Que sentido terá continuar a sentir que mesmo sem sentido se sente o sentido que uma palavra tem?
Não se esforcem por sentir o sentido que tudo isto tem.
Uma palavra que aqui estivesse e tivesse sentido não faria decerto sentido.
Porque há sempre quem sinta que há um sentido em algo que não tem sentido nenhum.
Como se uma palavra sem sentido pudesse alguma vez ter sentido.
Quem sente que uma palavra sem sentido tem sentido ao pé de outras palavras sem sentido, não sente com certeza a falta de sentido daquilo que diz.
A esse, com ou sem sentido, apenas posso dizer: sinto muito.

amm (82)

Tuesday, May 3, 2005