Thursday, October 20, 2005

Desgostos

Quando não sabemos porque gostamos de uma determinada coisa, seja sopa, som ou garatujas, dizemos que os gostos não se discutem. Porém, estranhamente, é saboroso discutir os gostos. Suponho que poucas coisas mais fazemos na vida do que discutir os gostos. Nunca gostei da Ágata porque na altura em que poderia ter gostado da Ágata, ainda não era a Ágata que se ouvia mas as outras imensas Ágatas que havia. Por razões bastante razoáveis, e à medida que aprendia a ler coisas mais complexas que Os Cinco, e a comer coisas mais sedutoras que pirolitos, também aprendi a exigir sons mais musicais do que ruídos. Poderia, evidentemente, ter permanecido na minha colecção de Ágatas, porque todos os dias aparece uma Ágata nova, com renovada diferença e igual musicalidade. Até poderia explicar porque é que não fiquei com as Ágatas e passei a outras músicas. Mas o assunto não é esse. O assunto é a satisfação e o êxtase. É complicado, muito complicado mesmo, comparar êxtases. Não digo comparar o meu êxtase de hoje com o êxtase de ontem. Refiro-me a comparar o meu êxtase com o êxtase de outra pessoa. Sempre que tento fazer isso faltam-me dados. Nestes casos prefiro dizer que êxtases não se discutem e passar à frente. Já a satisfação é diferente. A satisfação discute-se. Muito satisfeito, pouco satisfeito, nada satisfeito. Tudo isto se aplica à música, ao chouriço ou à literatura. Há quem se satisfaça com pouco. Há quem viva em permanente insatisfação. Há quem se satisfaça principalmente com a insatisfação dos outros. Há até quem, ao longo da vida, por razões pouco razoáveis, vá sendo cada vez mais exigente naquilo que o satisfaz. Por mim, que me satisfaço com pouco, gostaria de me satisfazer com cada vez menos - era mais fácil - mas fico cada vez mais insatisfeito com cada vez mais coisas. É verdade! Ando a tornar-me exigente. E isto é um problema. Porque os êxtases tornam-se um problema. Os êxtases são cada vez menos. É este o preço a pagar pela insatisfação. E porquê esta insatisfação? Porque há poucos que são demasiado poucos para aceitarmos que haja quem se satisfaça com eles. Porque não fico satisfeito ao ver tanta gente satisfeita com tão pouco. Porque lamento que as pessoas não sejam mais exigentes do que são, consigo e com os outros. Porque basta a facilidade para satisfazer. Porque sabendo pouco ou nada há mais hipóteses de satisfação. Tudo isto é um devaneio barroco. Nada disto tem importância. O que era muito importante e construtivo era que se percebesse que não gostar do que uma pessoa gosta não implica não gostar dela. Só assim que se conseguem êxtases a discutir gostos.

(amm)

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